A regulação MiCA (Markets in Crypto-Assets Regulation), introduzida pela União Europeia em 2023 e com previsão de implementação completa ao longo de 2024, representa uma mudança crucial na forma como os criptoativos são governados, trazendo uma abordagem regulatória que reconhece e diferencia explicitamente entre os diferentes tipos de ativos digitais.
Essa distinção é vital em um cenário onde a digitalização de ativos financeiros avança rapidamente, permitindo a criação de instrumentos financeiros, mas exigindo, ao mesmo tempo, um tratamento regulatório específico e adequado às características de cada tipo de ativo. A MiCA, ao estabelecer regras diferenciadas para ativos puramente especulativos, como criptomoedas sem lastro, e tokens lastreados em ativos reais (RWA – Real World Assets), como imóveis e commodities, oferece um modelo de governança que pode ser crucial para a maturação segura e sustentável do mercado de criptoativos.
As criptomoedas, por sua natureza volátil e muitas vezes desprovidas de lastro tangível, representam um desafio significativo para reguladores ao redor do mundo. A MiCA aborda esse desafio ao exigir altos padrões de transparência e comunicação para as emissões de criptomoedas, garantindo que os investidores sejam plenamente informados sobre os riscos e a natureza especulativa desses ativos. Além disso, a regulação impõe medidas de segurança rigorosas para a negociação e custódia de criptomoedas, visando proteger os investidores de
fraudes e práticas de mercado abusivas.
Essas exigências são particularmente importantes em um ambiente onde a falta de transparência pode levar a perdas significativas para os investidores, e onde as criptomoedas podem ser utilizadas em esquemas fraudulentos. Ao estabelecer normas claras e detalhadas para a emissão, negociação e custódia desses ativos, a MiCA busca criar um mercado mais transparente e confiável, onde os investidores possam tomar decisões informadas com base em dados sólidos e verificáveis.
Por outro lado, os tokens de RWA oferecem uma proposta completamente diferente. Esses tokens estão diretamente vinculados a ativos tangíveis, como imóveis, commodities ou até mesmo direitos sobre receitas futuras, conferindo-lhes um valor intrínseco que é diretamente relacionado ao ativo subjacente. A MiCA reconhece essa diferença fundamental e, por isso, impõe um conjunto de regras que garantem a integridade desses tokens. Isso inclui a exigência de que os emissores publiquem whitepapers detalhados, explicando em profundidade a natureza do ativo subjacente, os direitos que o token confere aos seus detentores, e os mecanismos de custódia e segurança que serão utilizados para proteger esses ativos.
Além disso, a regulação também prevê medidas para assegurar a liquidez desses tokens, facilitando sua negociação em mercados secundários e garantindo que os investidores possam converter seus tokens em ativos tangíveis ou em moeda fiduciária de maneira eficiente e segura. Essa abordagem é vital para fomentar a confiança dos investidores em tokens RWA, que, por sua natureza, exigem uma infraestrutura robusta e bem regulamentada para garantir que o valor do ativo subjacente seja sempre preservado e acessível.
No contexto brasileiro, o cenário regulatório está em um momento de transformação e adaptação. O país já demonstrou uma receptividade significativa para inovações financeiras, como evidenciado pela implementação do sistema de pagamentos instantâneos (Pix) e pelo desenvolvimento do open finance, que juntos representam avanços substanciais na modernização do sistema financeiro nacional. No entanto, quando se trata de criptoativos e, em particular, de tokens lastreados em ativos reais, o Brasil ainda precisa desenvolver uma estrutura regulatória que seja tão clara e abrangente quanto a MiCA.
Uma regulação que reconheça as diferenças fundamentais entre criptomoedas sem lastro e tokens RWA seria crucial para fortalecer a confiança no mercado de criptoativos no Brasil. A criação de normas específicas para tokens lastreados em ativos reais, por exemplo, poderia facilitar a tokenização de uma vasta gama de ativos brasileiros, como terras agrícolas, commodities e outros recursos naturais, áreas em que o Brasil possui uma vantagem competitiva global.
Com a regulamentação das criptomoedas no Brasil se tornando uma prioridade crescente para o governo e as entidades reguladoras, o cenário para o mercado cripto em 2024 parece destinado a passar por transformações significativas. O Congresso Nacional, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Banco Central do Brasil (BC) estão intensificando seus esforços para introduzir novas normas que visam fiscalizar e organizar diversos segmentos da indústria cripto local, buscando não apenas acompanhar as melhores práticas internacionais, mas também proteger investidores e garantir a integridade do mercado.
Uma das principais iniciativas em tramitação no Congresso é o Projeto de Lei (PL) que propõe a segregação patrimonial, exigindo que as exchanges que operam no Brasil mantenham os ativos de seus clientes separados de seus próprios ativos. Essa medida, que ganhou destaque após eventos como a falência da FTX, busca evitar que os fundos dos clientes sejam comprometidos em caso de insolvência ou má gestão das corretoras.
Embora o PL já esteja em tramitação, especialistas indicam que, devido às eleições municipais, sua aprovação final pode ser adiada para 2025. No entanto, a urgência e a relevância da questão sugerem que o BC pode agir de forma independente para exigir a segregação patrimonial através de regulamentação infralegal, caso o Congresso não consiga aprovar o PL em tempo hábil.
Paralelamente, a CVM está concentrando seus esforços na regulação da tokenização de ativos, um segmento que está crescendo rapidamente no Brasil e globalmente. A autarquia planeja lançar consultas públicas ainda em 2024, com o objetivo de ajustar as normas de crowdfunding às novas realidades das ofertas de ativos tokenizados.
Além disso, há discussões sobre a criação de um regime específico para o registro de empresas que operam na área de tokenização, o que incluiria a possibilidade de desenvolver mercados secundários para a negociação de tokens, uma inovação que atualmente não existe no Brasil. Essa medida poderia abrir oportunidades para investidores e empresas, promovendo maior liquidez e acessibilidade aos mercados financeiros digitais.
O Banco Central do Brasil, por sua vez, está focado em ampliar e fortalecer a regulamentação cripto no país. Entre as principais ações planejadas para o restante do ano estão a regulação do uso de stablecoins e o início do processo de autorização para as corretoras que atuam no setor. O BC também deve realizar uma consulta pública para definir claramente quem se enquadra como prestador de serviços de ativos digitais, uma medida que visa clarificar as responsabilidades e obrigações das empresas que operam nesse mercado. E assim como já mencionado, o Banco Central pode optar por antecipar a exigência de segregação patrimonial das exchanges, especialmente se o progresso do PL no Congresso continuar a enfrentar atrasos.
Essas iniciativas demonstram o compromisso das autoridades brasileiras em criar um ambiente regulatório robusto e moderno, que não apenas proteja os investidores, mas também estimule a inovação e o crescimento da economia digital no Brasil. A adoção de medidas como a segregação patrimonial, a regulamentação da tokenização e a definição clara das responsabilidades dos prestadores de serviços de ativos digitais são passos fundamentais para garantir que o Brasil não apenas acompanhe, mas lidere o desenvolvimento global da economia digital.
Uma abordagem regulatória robusta no Brasil poderia ainda incentivar a participação de instituições financeiras tradicionais na custódia e negociação de tokens RWA. Isso seria essencial para garantir que esses tokens sejam vistos como instrumentos financeiros confiáveis e plenamente integrados ao sistema financeiro nacional e internacional. Dessa forma, não apenas aumentaria a liquidez e a atratividade desses tokens para investidores institucionais, como
abriria oportunidades para o desenvolvimento de produtos financeiros inovadores que poderiam transformar setores chave da economia brasileira.
Ao adotar uma regulação que seja tanto segura quanto adaptável às necessidades específicas do mercado brasileiro, o país estaria em posição de se tornar um líder global na tokenização de ativos reais, promovendo um crescimento econômico mais inclusivo e sustentável, e atraindo investimentos internacionais que buscam ambientes regulatórios estáveis e previsíveis.
Além dessas considerações, o Brasil precisa observar atentamente as lições que podem ser extraídas das discussões globais sobre a segregação patrimonial, especialmente no contexto da recente falência da FTX. A segregação patrimonial, que exige a separação dos fundos dos clientes dos recursos próprios das corretoras é um tema que tem ganhado relevância e pode ser crucial para a proteção dos investidores no mercado cripto.
No Brasil, o avanço dessa discussão no Congresso Nacional, juntamente com as ações planejadas pelo Banco Central e pela CVM, indica que o país está caminhando para estabelecer um marco regulatório que não apenas protege os investidores, mas também garante a integridade do mercado como um todo. A implementação de normas claras sobre a segregação patrimonial, seja por meio de legislação específica ou regulamentação infralegal, será essencial para garantir que os fundos dos investidores estejam protegidos em casos de insolvência ou má gestão por parte das corretoras.
Em resumo, a regulação MiCA não é apenas um modelo a ser seguido, mas um exemplo de como a governança de criptoativos pode evoluir para apoiar a inovação sem comprometer a segurança e a integridade do mercado. Para o Brasil, adotar uma abordagem regulatória semelhante à MiCA representaria uma oportunidade única de fortalecer sua posição no mercado global de criptoativos e de liderar o caminho na tokenização de ativos reais.
Em última análise, o sucesso de qualquer marco regulatório estará em sua capacidade de reconhecer as diferenças entre os diversos tipos de ativos e de criar um ambiente onde todos possam prosperar de maneira segura e eficiente, assegurando que a digitalização de ativos não só se torne uma realidade, mas uma realidade que contribua para o desenvolvimento econômico.
*Anderson Nacaxe é Especialista em Commodities e Tokenização de Ativos Reais.